Segredos
de um Prisioneiro
Nunca pensei que um dia tivesse a coragem de falar
diretamente sobre isso. É uma dor tão bem guardada desde a infancia, uma
tristeza e uma apatia pela vida... que vida?
Dediquei-me a espiritualidade com o objetivo de
“corrigir”, aceitar nunca, curar sim, entender o porque deste castigo, deste
carma.
Sempre me senti numa prisão. Uma prisão de mim mesmo,
escondido entre sorrisos e loucuras. Na solidão, dei vazão a fantasia, que me
beneficiou sempre, afastando de mim o desespero e o encontro com a morte.
Aliviou a dor de me olhar no espelho e de ouvir meus filhos me chamando de mãe.
Tentei de tudo para encontrar a cura. Tentei de tudo
esconder de mim e do mundo a aberração que eu via em mim. Eu nunca consegui ser
feminina como era pra ser. Eu nunca me senti mulher. Eu sempre me senti um
homem aprisionado, oprimido, culpado, julgado e jurado de morte.
No trabalho, ainda bem, tinha momentos que me sentia
muito bem. Fui policial e podia então ter meu jeito desengonçado de ser mulher
muito macho.
Construi um personagem socialmente aceito, pois no meu
tempo de adolecente falar sobre esse assunto era tabu e eu nem conhecia ninguem
igual a mim. Não conhecia nem um gay masculino, quanto mais feminino. E eu
nunca me considerei gay, ficava com ódio quando me chamavam de lésbica, o que
foi pergunta do meu teste para entrar na polícia. Incoerentemente ou por
questão de sobrevivencia, eu neguei, por que sempre neguei minha condição.
Sempre neguei a mim mesmo. Chorei na ocasião, não sei se de raiva ou desespero
por terem percebido meu grande “defeito”.
Tendo sido criada como filha única numa familia católica,
não tinha irmãos e irmãs para me vigiarem ou descobrirem meu segredo. No começo
eu sentia falta deles. Achava que com eles tudo teria sido diferente... hoje eu
agradeço por ter sido assim.
Eu trancava meu quarto e mantinha minhas coisas uma
bagunça total, onde somente eu entrava e conseguia me entender. Assumi o
compromisso de limpeza dele assim que menstruei a primeira vez.
Comecara, então, as mudanças naturais do corpo e o meu
castigo. Era um tormento, a pior sensação que tive durante minha vida. Aquela
esperança de criança de dormir menina e acordar menino nunca iria acontecer de
verdade. Fora uma ilusão, um solho frustrado.
Restava-me a fantasia!
Na realidade restava a morte lenta e dolorosa do
cotidiano, onde deixava de viver e ia seguindo adiante conforme os paradigmas.
Casei, tive filhos, namorei com rapazes quando estava
apaixonado por uma menina e queria me curar ou me punir do tremendo pecado que
estava cometendo.
Nunca me senti tão imundo quando das relações que tive
com homens. E qualquer um que chegasse perto de mim com essas intenções corria
serio risco de vida, pois eu so pensava em mata-lo ou me matar. Era a punição
de um grande pecado que eu deveria ter praticado em vidas passadas! Eu devia
ser infeliz a vida inteira, neste corpo horrível!
Ainda bem que nunca tive coragem suficiente para isso,
pois das duas últimas vezes que pensei seriamente no assunto, foi a visão dos
meus filhos pequenos que me removeram ou adiaram a ideia de suicídio.
Hoje tenho um filho de onze anos! A idéia continua
adiada.
Assistindo recentemente videos vejo que para os jovens
que passam pela mesma situação de descobertas que passei, existem saídas. Para
mim não existe mais. Estou no meu modo andrógeno de sempre. Nem uma coisa nem
outra e totalmente sem esperança de ainda ser feliz.
Frustrado? Não. Eu consegui viver com meus dilemas e
construi coisas lindas. E tentei me destruir sempre. E sempre me reconstruia em
cima das minhas próprias cinzas. Sempre por um motivo externo de mim. Minha vida
comigo sempre foi uma merda!
Hoje estou novamente aqui, me sentindo mal. Mas sei
que isso vai passar. Sempre passou. Sei que fiz escolhas e vou com elas até o
fim. Sei que estou sozinho nesta e vou continuar sozinho, ou aparentemente
sozinho. Vou continuar vivendo, contudo sem me punir. Quero a liberdade de ser
apenas eu mesmo, sem explicar nada pra ninguem e isso a idade me da a cobertura
suficiente... velhos ninguem olha, ninguem entende, ninguem quer saber, ninguem
quer contato!
Eu sou velho, velho por dentro, cansado de fingir que
sou outra pessoa, cansado de vestir uma personagem, cansado de exposição. Quero
ficar comigo e chegar ao fim com tranquilidade de ser apenas eu mesmo de
preferencia numa casa sem espelhos.
Eu sempre fui um homem disfarçado. Já não quero mais
me fantasiar de mulher! Evito as roupas e os trejeitos que me obriguei a
aprender, para fazer parte do grupo, o mesmo grupo que hoje despreso.
Eu não gosto de gente. Eu não gosto de pessoas e nem
do que elas pensam ou falam. Eu não quero ninguem. Eu quero ser apenas eu mesmo
e somente poderei ser eu mesmo em paz se estiver sozinho, no meu lar, no meu
interior.
Dentro de mim eu tenho paz, eu sou paz. Dentro de mim
eu sou livre. Dentro de mim eu sou apenas eu mesmo, sem rotulos, sem gêneros,
sem obrigações, sem diferenças, sem preconceito.
Hoje, 05.05.16, revisado e reescrito em 25.12.16
Eu.
FWagner